A história do homem está intrinsecamente relacionada ao uso e à evolução da tecnologia, desde as mais prosaicas, inventadas há séculos, até as mais modernas, como as famigeradas inteligências artificias que prometem revolucionar o dia a dia.
O Direito, que também se submete às transformações da sociedade e aos avanços tecnológicos, está em constante evolução, e para se adequar às mudanças, promulgam-se e alteram-se leis, portarias e resoluções visando conceder uma maior efetividade ao processo e um menor custo ao Estado, sem perder de vista a manutenção das garantias constitucionais dos cidadãos.
No passado, as petições eram escritas à mão e, com o passar dos anos e a evolução da tecnologia, passaram a ser datilografadas em máquinas de escrever — sendo que, hodiernamente, utilizam-se computadores e tablets. Como decorrência, os requerimentos eram protocolados diretamente no fórum de cada cidade, no horário determinado por cada tribunal — no estado de São Paulo, como regra, admitia-se a realização de protocolos entre as 9h e 19h —, o que gerava um elevado custo ao Estado e aos operadores do Direito envolvidos no processo (por exemplo: transporte, impressão e espaço para o armazenamento dos processos).
Atualmente, o processo digital se tornou a regra em nossos tribunais, possibilitando que os operadores do Direito acessem os autos a qualquer tempo, assim como façam protocolos de qualquer local, desde que conectados à rede mundial de computadores.
Atualização normativa
Como não poderia deixar de ser, a migração para o sistema digital gerou a elaboração de leis, normativas, portarias e alterações em regimentos internos de tribunais, com destaque para a Lei Federal n° 11.419/2006, que criou regras e procedimentos para balizar o processo eletrônico.
Os avanços também chegaram no âmbito da utilização do sistema audiovisual para a colheita de depoimentos, que, com a promulgação da Lei Federal n° 11.719/2008 e a introdução do artigo 405 no Código de Processo Penal, passou a permitir que as audiências passassem a ser gravadas, evitando interpretações errôneas de testemunhos e perda de informações, garantindo às partes o acesso à prova em sua integralidade, na forma exata em que foi produzida.
Em 2010, o Conselho Nacional de Justiça, além de tratar do registro de depoimentos por meio do sistema audiovisual, passou a prever a realização de atos judiciais virtuais (cf. Resolução nº 105/2010) – apesar de ser prevista desde o ano de 2010, a modalidade passou a ser mais aceita e utilizada durante e após a pandemia de Covid-19, em 2020.
Nesse mesmo ano, em meio ao caos gerado pela emergência sanitária, editou-se a Resolução nº 354/2020 do Conselho Nacional de Justiça, representando, à época, uma resposta para a continuidade dos atos processuais ao regulamentar a realização de audiências e sessões por videoconferência e telepresenciais, assim como a comunicação de atos processuais por meio eletrônico.
A partir de então, a realização de audiências por videoconferência mostrou-se uma realidade, propiciando celeridade processual e a colheita de provas pelo juiz natural.
Procedimentos virtuais nas fases de ação penal e inquisitorial
Com tantas mudanças ocorridas em tão poucos anos, criaram-se dúvidas sobre a aplicação de procedimentos virtuais em inquéritos policiais presididos pelas Polícias Civis e Federal, havendo entendimento de que a colheita de depoimentos e interrogatórios por videoconferência seria válida.
Com efeito, o artigo 405 do Código de Processo Penal, apesar de estar inserido no capítulo “da instrução criminal” – e, portanto, tratar de procedimentos relativos à ação penal –, utiliza termos característicos da fase administrativa, como investigado e indiciado, o que fez com que parte dos operadores do Direito entendessem pela aplicabilidade do dispositivo na fase inquisitorial.
De acordo com o delegado de Polícia Civil Alexandre Henrique Lobo de Paiva, a utilização da gravação audiovisual na colheita de depoimentos e interrogatórios produzidos no inquérito policial deve ser enxergada de forma positiva [1]:
“Tal medida, além de conferir maior transparência à forma como são colhidos os depoimentos em sede policial – o que poria uma pá de cal sobre boa parte das alegações infundadas levantadas pela defesa, no sentido de que os seus clientes foram torturados (física ou psicologicamente) – preservaria, de forma mais fidedigna possível, as falas e expressões utilizadas pelo indiciado e pelas testemunhas.”
Não se ignora que diversos procedimentos relacionados à fase de ação penal são aplicáveis por analogia à fase de inquérito policial, entretanto, a realização de atos virtuais na fase inquisitorial deve passar, necessariamente, por uma leitura que respeite as garantias dos investigados, tal como ocorre na fase judicial.
Uso na cadeia de custódia
Outro aspecto que merece ser levado em consideração é o atendimento dos procedimentos relacionados à cadeia de custódia, imprescindíveis para as denominadas “provas digitais”, que, de acordo com o artigo 158-A do Código de Processo Penal, pode ser definida como sendo “o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado (…), para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte” [2].
Com isso, objetiva-se assegurar que os elementos probatórios sejam devidamente tratados desde a sua coleta até a sua apreciação pelo Poder Judiciário, de modo que a sua validação e valoração apenas ocorrerá caso a cadeia de custódia tenha sido rigidamente seguida.
Não por acaso, o Superior Tribunal de Justiça recentemente manifestou-se no sentido de que é “(…) indispensável que todas as fases do processo de obtenção das provas digitais sejam documentadas, cabendo à polícia, além da adequação de metodologias tecnológicas que garantam a integridade dos elementos extraídos, o devido registro das etapas da cadeia de custódia, de modo que sejam asseguradas a autenticidade e a integralidade dos dados” [3], pois, caso contrário, as provas serão inadmissíveis.
Conclusão
Realizadas essas considerações, conclui-se que a implementação das tecnologias no processo penal enfrenta desafios significativos, tais como: a garantia da segurança das informações, a necessidade de infraestrutura adequada e o treinamento dos operadores do Direito.
O uso das tecnologias no processo penal representa um marco e um avanço importante para o sistema judicial, no entanto, é crucial que o seu uso — sobretudo na fase inquisitorial — esteja de acordo com os direitos fundamentais e com as normas que regem o processo penal democrático.
[1] PAIVA, Alexandre Henrique Lobo de. Gravação audiovisual das oitivas realizadas em sede policial. Aplicabilidade do artigo 405, §§ 1º e 2o do Código de Processo Penal. Revista Jus Navigandi, v. 15, n. 2601, 2010. Disponível em: <goo.gl/M6pczq>. Acesso em: 2.agosto de 2024.
[2] “Art. 158-A. Considera-se cadeia de custódia o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte.”
[3] Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Habeas Corpus n° 828.054/RN, relator: Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 23/4/2024, DJe de 29/4/2024.
Por: Giovanna Zanata Barbosa e Rodrigo Calbucci.
Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-set-02/o-uso-das-tecnologias-no-processo-penal/