O direito é uma ciência mutável, isto é, se modifica de acordo com as transformações da sociedade, com os costumes, com as inovações tecnológicas, com as alterações das relações interpessoais, entre outros tantos fatores que influenciam não apenas a promulgação ou alteração das leis, como a sua efetiva aplicação.
No entanto, as modificações legislativas não são concretizadas imediatamente após a constatação de uma mudança na sociedade e, prova disso, é que em 2023 — isto é, depois da inclusão do crime de feminicídio no Código Penal —, o Supremo Tribunal Federal teve que enfrentar o tema da aplicação e acatamento da tese da “legítima defesa da honra” [1].
Em agosto de 2023, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 779, de relatoria do ministro Dias Toffoli, fixou o entendimento de que a legítima defesa da honra não estaria inclusa no gênero da figura da legítima defesa, presente no artigo 23, inciso II, do Código Penal.
Antes de adentrar no mérito da referida decisão, no entanto, é necessário realizar uma digressão no tempo e recordar que, em um passado não muito distante, não só era comum a alegação como o acatamento da tese da “legítima defesa da honra”, que consistia na apresentação de justificativa para o cometimento do delito, por parte da defesa do imputado, de que o crime teria sido realizado para defender a sua honra.
Em outras palavras, caso a ofendida — geralmente uma mulher — maculasse a honra do seu agressor, isso daria direito ao último de agredir ou até assassinar sua vítima, sem que consequências penais fossem tomadas, pois a defesa da honra podia ser equiparada à legitima defesa, motivo pelo qual, quando aplicada, havia a exclusão de ilicitude.
Ora, se não se tratava de conduta ilícita, não havia crime, e, portanto, medida que se impunha era a absolvição e a consequente não aplicação de pena.
Caso emblemático da arguição da tese de “legítima defesa da honra” foi aquele envolvendo Ângela Maria Fernandes Diniz, em 1976, assassinada por Raul Fernando do Amaral Street.
Segundo a narrativa da defesa de Doca Street, teria havido um entrave entre eles, e a vítima teria manifestado o seu desejo de terminar o relacionamento, quando lhe foram desferidos tiros no rosto.
Durante o julgamento, Evandro Lins e Silva, advogado de defesa de Doca Street, tornou pública a vida privada de Ângela Maria Fernandes Diniz e atribuiu à vítima a culpa do crime em virtude de seu próprio comportamento, que teria manchado a honra de Raul Fernando do Amaral Street.
Há notícias, inclusive, que apontam que, em uma de suas falas no plenário, a defesa técnica do acusado teria pontuado que: “[Ângela Diniz] Era uma mulher que não tinha os princípios que nós conservamos, preferiu abandoná-los. (…) Infeliz depois (…) tenho o direito de explicar, de compreender como um gesto de desespero, uma explosão incontida de um homem ofendido na sua dignidade”. [2]
Assim, em um primeiro julgamento, Raul Fernando do Amaral Street foi condenado por cinco votos a um a cumprir pena de apenas dezoito meses pelo crime. No entanto, como ele ficou preso preventivamente e teve direito à suspensão condicional da pena, não cumpriu o restante de sua sanção, saindo de cabeça erguida do julgamento.
O deslinde do referido caso, em um primeiro momento, não causou estranheza na sociedade, pois, naquele momento, era comum o atrelamento da conduta da mulher com a honra do homem — fosse seu pai, seu esposo. Sobre o tema, Carlos Alberto Doria lembra que:
“Assim, a reputação pública da mulher (fama) era, simultaneamente, um dos componentes da honorabilidade do homem que a dominava. […] Para o pai da moça, por exemplo, a ‘defloração’ significava que o sedutor havia ‘levado’, junto com a virgindade e para sempre, a honra que ‘valia mais que a vida’.”[3]
Em meados dos anos 1980, a sociedade brasileira, após uma nova onda do que hoje se conhece como feminicídio, passou, gradativamente, a ter um novo olhar sobre o tema, havendo o surgimento, por exemplo, do movimento “quem ama não mata”.
Com essa nova perspectiva, Raul Fernando do Amaral Street foi submetido a um novo julgamento, no qual a tese de legítima defesa da honra não foi acolhida, culminando em uma condenação à pena de 15 anos de reclusão.
Encerrada esta breve digressão, retorna-se ao século 21 para se analisar a abordagem do Supremo Tribunal Federal sobre a utilização e o acatamento da tese da “legítima defesa da honra”.
Na visão do Pretório Excelso, a legítima defesa da honra é “(…) dissonante da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da CF), da proteção à vida e da igualdade de gênero (artigo 5º, caput, da CF), da proteção à vida e da igualdade de gênero (artigo 5º, caput, da CF)”. [4]
Ainda sob o espectro da corte constitucional, a utilização da legítima defesa da honra, para além de não constituir causa de excludente de ilicitude, serve ao seu beneficiário para além de poder “imputar às vítimas a causa de suas próprias mortes ou lesões” obter um salvo-conduto para “atacar uma mulher de forma desproporcional, covarde e criminosa”. [5]
Ademais, de forma precisa e correta, o Supremo Tribunal Federal asseverou que o acolhimento da referida tese defensiva, ao não gerar a adequada retribuição ao imputado, pode culminar no “(…) estímulo à perpetuação da violência contra a mulher e do feminicídio”. [6]
Mencionado raciocínio foi absolutamente correto, pois, ao se usar como paralelo a broken windows theory — teoria das janelas quebradas — , quanto mais o poder público demonstrar descuido e maltrato sobre certas ações — sejam elas a destruição de veículos abandonados, sejam elas a violência doméstica e feminicídios —, mais os agentes acreditarão na impunidade e se sentirão incentivados a cometer delitos.
O Supremo Tribunal Federal finaliza concluindo que:
“(…) 5. Na hipótese de a defesa lançar mão, direta ou indiretamente, da tese da ‘legítima defesa da honra’ (ou de qualquer argumento que a ela induza), seja na fase pré-processual, na fase processual ou no julgamento perante o tribunal do júri, caracterizada estará a nulidade da prova, do ato processual ou, caso não obstada pelo presidente do júri, dos debates por ocasião da sessão do júri, facultando-se ao titular da acusação recorrer de apelação na forma do art. 593, III, a, do Código de Processo Penal. 6. Medida cautelar parcialmente concedida para (i) firmar o entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), da proteção à vida e da igualdade de gênero (art. 5º, caput, da CF); (ii) conferir interpretação conforme à Constituição aos arts. 23, inciso II, e 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e ao art. 65 do Código de Processo Penal, de modo a excluir a legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa; e (iii) obstar à defesa, à acusação, à autoridade policial e ao juízo que utilizem, direta ou indiretamente, a tese de legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese) nas fases pré-processual ou processual penais, bem como durante o julgamento perante o tribunal do júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento. 7. Medida cautelar referendada.” [7]
Como se viu, em um passado não muito distante era aceitável que mulheres fossem mortas, violentadas e espancadas, simplesmente porque teriam feito algo que tivesse maculado a honra de um homem do seu círculo pessoal. Entretanto, hodiernamente, o Supremo Tribunal Federal, acertadamente, vetou o uso e o acatamento da tese da legítima defesa da honra.
Ainda há um longo caminho a ser percorrido para que o Brasil — onde quatro vítimas de feminicídio morrem por dia — seja um local seguro para as mulheres, [8] todavia, esse pequeno passo foi um importante sinal à sociedade para a diminuição do machismo e da impunidade.
[1] Supremo Tribunal Federal, Arguição de Preceito Fundamental n° 779, Relator: Ministro Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 01-08-2023, publicado em 06-10-2023.
[2] Disponível em: https://www.uol.com.br/splash/noticias/2023/09/05/angela-diniz-doca-street-assassinato.htm. Acesso em: 19/03/2024.
[3] DÓRIA, Carlos Alberto. A tradição honrada (a honra como tema de cultura e na sociedade iberoamericana). Cadernos Pagu, Sedução, tradição e transgressão, v.2, p. 47-111, 1994. Disponível em: <https://ieg.ufsc.br/storage/articles/October2020/03112009-104421doria.pdf>. Acesso em 19/3/2024. p. 20.
[4] Supremo Tribunal Federal, Arguição de Preceito Fundamental n° 779, Relator: Ministro Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 01-08-2023, publicado em 06-10-2023.
[5] Supremo Tribunal Federal, Arguição de Preceito Fundamental n° 779, Relator: Ministro Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 01-08-2023, publicado em 06-10-2023.
[6] Supremo Tribunal Federal, Arguição de Preceito Fundamental n° 779, Relator: Ministro Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 01-08-2023, publicado em 06-10-2023.
[7] Supremo Tribunal Federal, Arguição de Preceito Fundamental n° 779, Relator: Ministro Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 01-08-2023, publicado em 06-10-2023.
[8] Disponível em: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2024/01/05/feminicidio-4-mulheres-morrem-por-dia-vitimas-deste-tipo-de-crime-no-brasil.ghtml. Acesso em 19/03/2024.
Por: Giovanna Zanata Barbosa
Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-abr-01/o-uso-da-defesa-da-honra-no-seculo-21/