Por Giovanna Zanata Barbosa e Rodrigo Calbucci
A Constituição de 1988 previu a criação, no âmbito da União, do Distrito Federal e dos estados, dos Juizados Especiais que, na esfera criminal, teriam por atribuição o julgamento das infrações penais de menor potencial ofensivo [1].
No intuito de dar cumprimento à norma constitucional, o projeto de Lei nº 1.480/1989, que deu origem à Lei nº 9.099/95, finalizava sua justificação alegando:
“São estes, em apertada síntese, os aspectos principais do projeto, cuja filosofia se insere no filão que busca dar efetividade à norma penal, ao mesmo tempo em que privilegia os interesses da vítima, sem descurar jamais das garantias do devido processo legal. E as palavras de apoio e de aplauso que seu debate tem provocado nos mais diversificados setores jurídicos e sociais indicam que a transformação do projeto em lei poderá significar considerável passo para o resgate da credibilidade da Justiça Penal [2].“
Além de estabelecer quais seriam os delitos de menor potencial ofensivo [3], uma das premissas da iniciativa legislativa foi a de privilegiar os interesses das vítimas [4] — sem esquecer, naturalmente, as garantias do processo penal devidas aos imputados —, o que se extrai de diversos artigos da mencionada lei que estabelecem como parâmetro a composição/reparação dos danos suportados pela vítima [5].
Mas talvez o mais importante instituto criado pela lei tenha sido aquele que ficou conhecido como suspensão condicional do processo. Por meio dele, estabeleceu-se que, nos crimes em que a pena mínima cominada fosse igual ou inferior a um ano, o Ministério Público poderia propor a suspensão do processo por um período de dois a quatro anos.
Para o oferecimento do benefício, deveriam estar presentes os requisitos elencados ao longo do artigo 89 da Lei nº 9.099/95, entre os quais aquele previsto no §1º do referido artigo, estabelecendo a necessidade da reparação do dano causado à vítima, salvo impossibilidade de fazê-lo [6].
Diante da enorme quantidade de crimes cujas penas mínimas não ultrapassavam um ano — e que também não eram considerados delitos de menor potencial ofensivo —, o instituto da suspensão condicional do processo passou a ser largamente utilizado, sem que houvesse, contudo, uma regulamentação sobre a reparação do dano causado à vítima.
Em que pese a existência da ressalva constante no inciso I do §1º, do artigo 89, da Lei nº 9.099/95, não resta claro o que configuraria a impossibilidade de reparação do dano. O que seria, afinal? Um valor que colocasse em risco a subsistência do imputado? Um valor superior ao seu salário mensal?
E, além disso, como ocorreria a comprovação da impossibilidade de reparação do dano causado à vítima? Por meio da apresentação de holerites? Imposto de renda? E se não houvesse tais documentos? Prova testemunhal?
Como se vê, são muitos — e atuais [7] — os questionamentos relacionados ao tema e, a nosso ver, enquanto não houver uma modificação legislativa que, de alguma forma, regulamente o tema, cabe ao magistrado, quando da ocorrência de audiência para o oferecimento de proposta de suspensão condicional do processo, e ao Ministério Público, quando do oferecimento de proposta de suspensão do processo, estipular que o prejuízo causado à vítima deva ser ressarcido integralmente.
Na tentativa de lançar luz sobre o tema, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) vem decidindo, acertadamente, que a impossibilidade de reparação do dano deve ser comprovada pelo imputado:
“AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. RECEPTAÇÃO. SUSPENSÃO CONDICIONAL PROCESSO. PROPOSTA. REPARAÇÃO DO DANO. NÃO ACEITAÇÃO. ALEGAÇÃO DE IMPOSSIBILIDADE FINANCEIRA. NÃO COMPROVAÇÃO. BENEFÍCIO NÃO CONCEDIDO. CONDIÇÃO LEGAL ARTIGO 89, §1º, LEI Nº 9.099/95. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. INOCORRÊNCIA. NÃO COMPROVAÇÃO DA HIPOSSUFICIÊNCIA. INEXISTÊNCIA DE NOVOS ARGUMENTOS APTOS A DESCONSTITUIR A DECISÃO IMPUGNADA. AGRAVO DESPROVIDO.
I – O artigo 89, §1º, da Lei nº 9.099/95, estabelece como condição obrigatória para a suspensão condicional do processo, o dever de reparar os danos, que somente poderá ser afastada se devidamente comprovada, na origem, a impossibilidade financeira de fazê-lo, o que não ocorreu na espécie.
II – Inviável o exame acerca da alegada impossibilidade de reparar o dano na via estreita do recurso ordinário em habeas corpus, instrumento que não comporta dilação probatória.
III – A suspensão condicional do processo é solução de consenso e não direito subjetivo do acusado, consoante precedentes desta Corte.
IV – No presente agravo regimental não se aduziu qualquer argumento novo e apto a ensejar a alteração da decisão agravada, devendo ser mantida por seus próprios fundamentos.
Agravo regimental desprovido” [8].
“PENAL E PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. 1. IMPETRAÇÃO SUBSTITUTIVA DO RECURSO PRÓPRIO. NÃO CABIMENTO. 2. SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. ACEITAÇÃO QUE NÃO IMPLICA EM RENÚNCIA AO MANDAMUS. MANUTENÇÃO DO INTERESSE. 3. REPARAÇÃO DO DANO. INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 89, §1º, I, DA LEI N. 9.099/1995. INCOMPATIBILIDADE DO INCIDENTE COM O WRIT. CONSTITUCIONALIDADE ASSENTADA PELO STF. INQ 1.055/AM QO. INSTITUTO QUE NÃO VIOLA O PRINCÍPIO DA NÃO CULPABILIDADE. 4. REPARAÇÃO DO DANO. CONDIÇÃO IMPRESCINDÍVEL DO SURSIS PROCESSUAL. 5. PRAZO DE 180 DIAS PARA REPARAR O DANO. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE. POSSIBILIDADE DE INCLUSÃO DE OUTRAS CONDIÇÕES. RESP REPETITIVO N. 1.498.034/RS. 6. AUSÊNCIA DE LIVRE MANIFESTAÇÃO. ALEGAÇÃO VAZIA. CONDIÇÕES ACEITAS NA PRESENÇA DE ADVOGADO CONSTITUÍDO. NÃO MANIFESTAÇÃO DE IRRESIGNAÇÃO. VÍCIO DE VONTADE NÃO DEMONSTRADO. CONDUTA CONTRADITÓRIA DO PACIENTE. 7.HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO.
1. O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, diante da utilização crescente e sucessiva do habeas corpus, passaram a restringir sua admissibilidade quando o ato ilegal for passível de impugnação pela via recursal própria, sem olvidar a possibilidade de concessão da ordem, de ofício, nos casos de flagrante ilegalidade. 2. A aceitação da proposta de suspensão condicional do processo não implica renúncia ao interesse de agir para impetração de habeas corpus, pois, embora não se trate diretamente do direito ambulatorial, tem-se que eventual descumprimento das condições impostas implica na revogação do benefício, retomando-se o curso normal da Ação Penal, a qual poderá acarretar, ao final, a aplicação de pena privativa de liberdade. Precedentes.
3. Quanto ao pleito de reconhecimento da inconstitucionalidade do inciso I do §1º do artigo 89 da Lei nº 9.099/1995, esclareço, de início, que ‘a instauração do incidente de inconstitucionalidade é incompatível com a via célere do habeas corpus porque a celeridade exigida ficaria comprometida com a suspensão do feito e a afetação do tema à Corte Especial para exame do pedido’ (HC 244.374/SP, relator ministro Moura Ribeiro). Ainda que assim não fosse, tem-se que o incidente de inconstitucionalidade deve ser utilizado quando efetivamente se vislumbrar a existência de norma inconstitucional no sistema normativo. Contudo, na hipótese dos autos, não há qualquer inclinação em se reconhecer a inconstitucionalidade da referida norma, porquanto em perfeita consonância com o ordenamento constitucional, conforme já consignou o STF na QO no INQ nº 1.055/AM. De fato, a assunção do compromisso de cumprir as condições previstas em lei bem como outras fixadas pelo Ministério Público não implica em reconhecimento de culpa, razão pela qual não viola o princípio da presunção de não culpabilidade. Revogada a suspensão, o processo retoma seu curso normal, cabendo à parte acusadora o ônus da prova da culpabilidade do acusado.
4. ‘A reparação do dano causado, salvo na impossibilidade de fazê-lo, prevista no artigo 89, §1º, I, da Lei nº 9.099/1995, é imprescindível para concessão do sursis processual’. (RHC 62.119/SP, relator ministro GURGEL DE FARIA, QUINTA TURMA, julgado em 10/12/2015, DJe 05/02/2016). Ressalto, outrossim, que a doutrina considera que a reparação do dano é uma das condições mais importantes, sendo obrigatória, uma vez que a reparação dos danos sofridos pela vítima é objetivo que deve ser buscado sempre que possível. Não é por outra razão que a omissão injustificada em ressarcir o prejuízo até o encerramento do período de prova é causa de revogação obrigatória da suspensão condicional do processo.
5. A Terceira Seção desta Corte, no julgamento do Resp Repetitivo nº 1.498.034/RS, consolidou entendimento no sentido de que ‘não há óbice a que se estabeleçam, no prudente uso da faculdade judicial disposta no artigo 89, §2º, da Lei nº 9.099/1995, obrigações equivalentes, do ponto de vista prático, a sanções penais (tais como a prestação de serviços comunitários ou a prestação pecuniária), mas que, para os fins do sursis processual, se apresentam tão somente como condições para sua incidência’. Dessa forma, não havendo óbice à inclusão de outras condições não previstas em lei, inclusive equivalentes a sanções penais, não há se falar em impossibilidade de se estabelecer prazo para reparação do dano.
6. A proposta foi aceita na presença de advogado constituído, o que revela o respaldo jurídico do paciente no momento em que aceitou a proposta da suspensão condicional do processo, mostrando-se vazia a afirmação de que não se manifestou livremente. O impetrante nem sequer aponta eventual vício de vontade. É no mínimo contraditória a conduta do paciente de aceitar as condições da suspensão condicional do processo, sem contestá-las no momento adequado, para então afirmar que não houve livre manifestação de vontade, pois não lhe foi franqueada a possibilidade de ajustar as cláusulas e condições.
Ora, o paciente não contestou nenhuma das condições, razão pela qual não se pode dizer que não teve possibilidade de ajustá-las.
7. Habeas corpus não conhecido [9].“
Portanto, na hipótese de o imputado alegar que não dispõe de recursos financeiros para tanto, cabe ao magistrado e ao representante do Ministério Público determinar a abertura de prazo para que o imputado demonstre, documentalmente — por exemplo, por meio da apresentação de holerites, extratos bancários, declarações de imposto de renda e outros meios idôneos —, a impossibilidade de reparação do dano.
Caso os documentos não comprovem a impossibilidade alegada, significará que o acusado não tem interesse na concessão do benefício, devendo ter prosseguimento a marcha processual.
Essa medida, embora não pacifique totalmente o tema, gera uma diretriz para o procedimento, considerando, conforme corretamente explicitado na exposição de motivos do PL que gerou a Lei nº 9.099/95, o interesse da vítima, aliado às regras processuais relacionadas à ampla defesa dos imputados.
[1] “Artigo 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão:
I – juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau;”.
[2] Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD24FEV1989.pdf. Acesso em 30.8.2022
[3] “Artigo 61. Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, cumulada ou não com multa. (Redação dada pela Lei nº 11.313, de 2006)”.
[4] Para que se tenha uma ideia da importância da vítima no direito e no processo penal brasileiro, cite-se como exemplo o fato de que, em sua redação original, o Código Penal de 1940 menciona a palavra “vítima” por 18 vezes, enquanto, na versão atual do código, a mesma palavra é citada 47 vezes.
[5] “Artigo 62. O processo perante o Juizado Especial orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, objetivando, sempre que possível, a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade”.
[6] Não se ignora, aqui, que a mencionada lei não foi a primeira a prever a possibilidade de reparação do dano causado à vítima. O artigo 59, inciso, II, da redação original do Código Penal de 1940 já tratava do tema.
[7] Por exemplo, a recente inovação que criou o Acordo de Não Persecução Penal estabelece, em seu artigo 28-A, inciso I, a necessidade de reparação do dano (ou restituição da coisa à vítima), exceto na impossibilidade de fazê-lo.
[8] Superior Tribunal de Justiça, Agravo Regimental no Recurso em Habeas Corpus nº 91.265/RJ, relator ministro Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 27/2/2018, DJe de 7/3/2018. (grifos nossos)
[9] Superior Tribunal de Justiça, Habeas Corpus nº 291.267/SP, relator ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 7/2/2017, DJe de 10/2/2017. (grifos nossos)
Artigo publicado no Conjur, em 5 de dezembro de 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-dez-05/barbosae-calbucci-vitima-reparacao-dano-processo-penal