A impossibilidade de decretação de medidas cautelares de ofício.

Por Giovanna Zanata Barbosa e Rodrigo Calbucci

Dentre as várias alterações trazidas pela Lei Federal n° 13.964/2019, conhecida como Pacote Anticrime, chamou a atenção a positivação da impossibilidade de o juiz, de ofício, decretar medidas cautelares. Assim, os artigos 284, §2º e §4º e 311, caput, ambos do Código de Processo Penal, passaram a ter as seguintes redações:

“Art. 282.  As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se a: (…)

§ 2º As medidas cautelares serão decretadas pelo juiz a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público. (…)

§ 4º No caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas, o juiz, mediante requerimento do Ministério Público, de seu assistente ou do querelante, poderá substituir a medida, impor outra em cumulação, ou, em último caso, decretar a prisão preventiva, nos termos do parágrafo único do art. 312 deste Código.” 

“Art. 311. Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial.” 

A intenção da nova redação legislativa foi a de fortalecer o sistema acusatório, ao retirar dos dispositivos supramencionados a expressão “de ofício”, de forma que as medidas cautelares apenas poderiam ser decretadas a requerimento dos envolvidos, sejam eles o Ministério Público, a Autoridade Policial, o Querelante ou, ainda, o Assistente de Acusação.

Cabe esclarecer que a nova disposição legislativa deve ser aplicada independentemente do crime praticado, inclusive aqueles cometidos no âmbito da violência doméstica, apesar da disposição contida no artigo 20 da Lei Federal n° 11.340/2006.[1]

Nesse sentido, inclusive, já se manifestou o Egrégio Superior Tribunal de Justiça, conforme demonstra trecho do voto do Exmo. Ministro Rogério Schietti:

Não obstante o art. 20 da Lei n. 11.340/2006 ainda autorizar a decretação da prisão preventiva de ofício pelo Magistrado, tal disposição destoa do atual regime jurídico que veda essa possibilidade, sobretudo após as alterações legislativas advindas da Lei n. 12.403/2011 e, mais recentemente, da Lei n. 13.964/2019.”[2]

Ademais, muito se discutiu, desde o início da vigência da nova legislação, acerca da conversão de prisão em flagrante delito em prisão preventiva – e não da decretação da prisão preventiva de ofício, esta, claramente vetada por lei.

Desde já, adianta-se que se entende não ser possível a conversão de ofício. Isso porque, deve haver uma interpretação sistêmica do artigo 310, inciso II, do Código de Processo Penal. [3]

Afinal, a conversão da prisão em flagrante delito em prisão preventiva não deixa de ser a decretação da prisão cautelar, e como os artigos 284, §2º e §4º e 311, caput, ambos do Código de Processo Penal, deixaram claro, ela não pode ocorrer de ofício.

Nesse sentido, inclusive, já se manifestou o Egrégio Supremo Tribunal Federal:

Impossibilidade, de outro lado, da decretação ‘ex officio’ de prisão preventiva em qualquer situação (em juízo ou no curso de investigação penal), inclusive no contexto de audiência de custódia (ou de apresentação), sem que se registre, mesmo na hipótese da conversão a que se refere o art. 310, II, do CPP, prévia, necessária e indispensável provocação do Ministério Público ou da Autoridade Policial – recente inovação legislativa introduzida pela lei nº 13.964/2019 (‘lei anticrime’), que alterou os arts. 282, §§ 2º e 4º, e 311 do código de processo penal, suprimindo ao magistrado a possibilidade de ordenar, ‘sponte sua’, a imposição de prisão preventiva – não realização, no caso, da audiência de custódia (ou de apresentação) – inadmissibilidade de presumir-se implícita, no auto de prisão em flagrante, a existência de pedido de conversão em prisão preventivaconversão, de ofício, mesmo assim, da prisão em flagrante do ora paciente em prisão preventiva – impossibilidade de tal ato, quer em face da ilegalidade dessa decisão, quer, ainda, em razão de ofensa a um direito básico, qual seja o de realização da audiência de custódia, que traduz prerrogativa insuprimível assegurada a qualquer pessoa pelo ordenamento doméstico e por convenções internacionais de direitos humanos. A reforma introduzida pela Lei nº 13.964/2019 (‘Lei Anticrime’) modificou a disciplina referente às medidas de índole cautelar, notadamente aquelas de caráter pessoal, estabelecendo um modelo mais consentâneo com as novas exigências definidas pelo moderno processo penal de perfil democrático e assim preservando, em consequência, de modo mais expressivo, as características essenciais inerentes à estrutura acusatória do processo penal brasileiro. A Lei nº 13.964/2019, ao suprimir a expressão ‘de ofício’ que constava do art. 282, §§ 2º e 4º, e do art. 311, todos do Código de Processo Penal, vedou, de forma absoluta, a decretação da prisão preventiva sem o prévio ‘requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público’, não mais sendo lícita, portanto, com base no ordenamento jurídico vigente, a atuação ‘ex officio’ do Juízo processante em tema de privação cautelar da liberdade. A interpretação do art. 310, II, do CPP deve ser realizada à luz dos arts. 282, §§ 2º e 4º, e 311, do mesmo estatuto processual penal, a significar que se tornou inviável, mesmo no contexto da audiência de custódia, a conversão, de ofício, da prisão em flagrante de qualquer pessoa em prisão preventiva, sendo necessária, por isso mesmo, para tal efeito, anterior e formal provocação do Ministério Público, da autoridade policial ou, quando for o caso, do querelante ou do assistente do MP.”[4]

Superada a premissa da conversão, debruçar-se-á sobre a decretação das medidas cautelares diversas da prisão.

Entende-se que elas, por também serem do gênero medida cautelar pessoal, não podem ser decretadas de ofício. Afinal, o caput do artigo 282 do Código de Processo Penal trata de todas as “As medidas cautelares previstas neste Título”. Ou seja, também abarca as medidas cautelares diversas da prisão.

Trata-se, novamente, da interpretação literal e sistêmica da legislação. Nesse sentido, segue trecho do voto do ministro Exmo. Ministro Sebastião Reis:

“Tal dispositivo tornou imprescindível, expressamente, o prévio requerimento das partes, do Ministério Público ou da autoridade policial, para ser possível a aplicação, por parte do Magistrado, de qualquer medida cautelar.”.[5]

 Por fim, cumpre realizar a ressalva de que, na hipótese de o Representante do Ministério Público representar, ou mesmo a Autoridade Policial, por exemplo, pela prisão preventiva do imputado e o Magistrado decretar medidas cautelares diversas da prisão, não há que se falar em decretação de ofício.

Isso porque, o Magistrado deverá decidir com base em seu livre convencimento, desde que motivado. Assim já esclareceu o Exmo. Min. Ministro Rogério Schietti: 

“Determinação do Magistrado, em sentido diverso do requerido pelo Ministério Público, pela autoridade policial ou pelo ofendido, não pode ser considerada como atuação ex officio, uma vez que lhe é permitido atuar conforme os ditames legais, desde que previamente provocado, no exercício de sua jurisdição.” [6]

Desse modo, conclui-se que:

  • Após a entrada em vigência da Lei Federal n° 13.964/2019 não é mais possível a decretação de prisão preventiva de ofício, mesmo em casos envolvendo violência doméstica;
  • Após a entrada em vigência da Lei Federal n° 13.964/2019 não é mais possível a conversão, de ofício, de prisão em flagrante delito em prisão preventiva;
  • Após a entrada em vigência da Lei Federal n° 13.964/2019 não é mais possível a decretação de medidas cautelares pessoais diversas da prisão de ofício.

       


[1] “Art. 20. Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva do agressor, decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade policial.” (grifos nossos).

[2] Superior Tribunal de Justiça, Recurso em Habeas Corpus n° 145225 / RO. Relator: Ministro Rogério Schietti. Sexta Turma. Publicado no DJE em 22.03.2022.

[3] “Art. 310. Após receber o auto de prisão em flagrante, no prazo máximo de até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, o juiz deverá promover audiência de custódia com a presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público, e, nessa audiência, o juiz deverá, fundamentadamente:   (…)II – converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão;”.

[4] Supremo Tribunal Federal, Habeas Corpus n° 188888, Relator: Ministro Celso de Mello. Segunda Turma, julgado em 06/10/2020. Publicado no DJe em 15.12.2020.

[5] Superior Tribunal de Justiça, Recurso em Habeas Corpus n° 131.263/GO, Rel. Ministro Sebastião Reis, Terceira Seção, Publicado no DJe em 15.04.2021.

[6] Superior Tribunal de Justiça, Recurso em Habeas Corpus n° 145.225/RO, Relator Ministro Rogério Schietti, Sexta Turma, Publicado no DJe em 22.03.2022.

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